A estratégia de adotar mais de uma cloud, para diversificar/aproveitar melhor os benefícios da infraestrutura em nuvem, não é nova.
Atualmente, é bastante comum encontrar especialistas em TI que defendem a adoção de estratégias multicloud e, consequentemente, companhias que investem nesse tipo de solução. Em algum nível, podemos dizer que o uso de múltiplos serviços de nuvem é uma das hypes do mercado de TI nos dias de hoje, altamente comentada e empregada. Agora, será que de fato o multicloud é a solução certa e com melhor custo-benefício para qualquer empresa?
Não se trata aqui de tratar o multicloud como um modismo sem sentido. É possível pensar em algumas situações em que essa estratégia é acertada para garantir desempenho e disponibilidade em cenários de alta demanda. No entanto, o que pretendo mostrar nesse artigo é que a adoção de múltiplas nuvens possui inconvenientes que não podem ser subestimados no momento de definição da estratégia das empresas.
Essa compreensão se mostra ainda mais relevante no contexto da pandemia de coronavírus. Por um lado, ela gerou um quadro de crise global que reduziu o montante de recursos disponível para investimentos em novas tecnologias (do ponto de vista de recessão para grande parte do comércio e algumas indústrias). Por outro, a pandemia – e a adaptação crescente das empresas para o trabalho remoto – acelerou o uso de tecnologias de nuvem.
A combinação desses dois fatores obriga as instâncias decisórias das companhias a investir em cloud com conhecimento e buscando o melhor resultado de acordo com as necessidades da empresa. É nesse cenário que devemos refletir sobre a aplicação de uma arquitetura de múltiplas nuvens, seus custos e, fundamentalmente, se o multicloud é de fato necessário para aquela empresa em particular.
MUDANÇAS NO MERCADO DE NUVEM
Antes de tratar especificamente sobre o tema central desse artigo, vale comentar brevemente sobre o estado da arte do mercado de nuvem e como esse quadro impacta na validade de uma estratégia multicloud. Inicialmente, vejamos os dois Magic Quadrants abaixo, elaborados pela Gartner. Eles classificam os principais serviços de nuvem disponíveis no mercado entre líderes, desafiantes, visionários e players de nicho levando em conta dois indicadores: capacidade de execução e completude da visão.
2017
2020
O primeiro gráfico mostra uma fotografia do mercado em junho de 2017. Nela, o que se vê é um acúmulo de serviços voltados para nichos, alguns competidores enquadrados como visionários, incluindo o Google Drive, no limite entre quadrantes, e a dupla Microsoft Azure e Amazon Web Services (AWS) como líderes incontestáveis do mercado, com altos níveis de capacidade de execução e visão completa.
Passados pouco mais de três anos, em agosto de 2020, o cenário exibido pelo Magic Quadrant da Gartner sofreu mudanças significativas. Logo de saída, é possível notar a concentração do mercado de cloud, com muito menos concorrentes com relevância para integrar o gráfico. Enquanto diversos serviços saíram, apenas o Tencent Cloud passou a figurar no levantamento da Gartner entre 2017 e 2020.
Há uma alteração ainda mais relevante. Dois quadrantes – Visionários e Desafiantes – agora estão vazios e os serviços de nuvem da Alibaba, IBM e Oracle foram classificados como Players de Nicho. Isso se deve, é possível supor, muito mais à evolução das demandas do mercado e dos líderes do mercado do que a uma perda de atributos desses serviços.
Por fim, esse cenário consolidou AWS e Azure, agora com a companhia do Google, como as Lideranças do mercado de cloud. Apesar de a Gartner ainda apontar diferenças nos resultados da avaliação dessas três nuvens, esse trio se torna cada vez mais indiferenciado, na verdade, oferecendo um conjunto de serviços muito similar entre si. Sim, do ponto de vista macro. Há sim diferenças entre pontos específicos entre um serviço de uma nuvem comparado com outro. Mas no geral, todos (desse trio) estão muito parecidos no nível de maturidade.
POR QUE O MULTICLOUD NÃO É PARA TODO MUNDO?
Eis a primeira razão para afirmarmos que o multicloud não é para todo mundo e pode ser, em determinadas situações, um desperdício de dinheiro. Os principais players do mercado cada vez mais se parecem, oferecendo serviços -e até mesmo preço – cada vez mais similares. Há alguns anos, era simples identificar algumas características particulares de cada um deles. Por exemplo, o Google era mais barato em armazenamento, a AWS sempre se destacou por trazer ferramentas novas, como cache e filas, e a Azure era mais robusta em disponibilidade.
Essas linhas estão borradas hoje em dia. Isso não quer dizer que os serviços sejam idênticos. Pelo contrário, eles guardam suas diferenças. Porém, ao assumir uma estratégia multicloud, as empresas correm o risco de justamente desperdiçar o poder de sinergia que essas plataformas oferecem.
Pensemos, por exemplo, na ferramenta de fila. Cada nuvem possui sua especificação própria e, portanto, suas forças e fraquezas. No entanto, ao se adotar o multicloud, a empresa precisará sempre buscar ser genérica o bastante para obter ganhos de escalas. Ou seja, a companhia contará com duas nuvens, mas utilizará apenas o que elas têm em comum, e não suas particularidades e o que de fato diferencia uma da outra.
Esse cenário de “pague 2 e leve 1” é financeiramente insustentável, em especial para startups e empresas menores. Mais: a situação narrada sobre a ferramenta de fila tende a se repetir em diferentes níveis em abordagens multicloud, caso elas não atendam às necessidades claras das empresas. E é preciso estar muito ciente de quais são as necessidades reais de cada companhia no que diz respeito aos serviços de nuvem.
Um dos argumentos principais em prol da adoção de estratégias multicloud é garantir a disponibilidade constante dos serviços que a empresa oferece pelo risco de a nuvem cair e permanecer fora de ação por algumas horas, o máximo de indisponibilidade que chega a ser experimentado pelos serviços mais robustos. Porém, a pergunta que deve ser feita nesses casos é: de fato é imprescindível que meu serviço não caia momento algum? É muito fácil responder: “Não é possível ficar 1 segundo offline. Os serviços precisam estar 100% de pé, sempre”. Mas quais são os pontos na sua infra-estrutura que são prioritários? Não há soluções técnicas de contorno que podem ser muito mais baratas do que uma estratégia (que normalmente envolve muito investimento – tempo, dinheiro e energia) em multicloud?
É evidente que qualquer problema operacional afeta, em alguma medida, os resultados financeiros da companhia e a satisfação do público. Mas são pouquíssimas as empresas que não podem contornar a indisponibilidade de um serviço com outro do ponto de vista de arquitetura. Pode-se dizer, por exemplo, que serviços de streaming devem adotar o multicloud para não correrem o risco de ficarem fora do ar pela queda da nuvem. Contudo, voltamos à pergunta: será que há danos tão intensos provocados pela falta de acesso por duas ou três horas ao seu serviço que justifiquem os gastos do multicloud? Será que na mesma cloud, não há alternativas para mitigar consideravelmente esse risco?
Essas respostas variam de segmento para segmento e de empresa para empresa. Esses são os fatores que devem ser postos na balança na hora de definir se a empresa embarca em uma abordagem com múltiplas nuvens ou se ela opta por fechar com apenas uma empresa, preferencialmente uma das três Líderes do mercado.
QUANDO O MULTICLOUD FAZ SENTIDO
Se o multicloud não é para todo mundo, também é possível notar que, em ocasiões específicas, adotar múltiplas nuvens pode ser uma opção viável e até mesmo necessária. Os exemplos, no entanto, podem ser bem particulares. Um deles diz respeito a momentos em que realmente a disponibilidade é crucial e períodos de pane no sistema da nuvem podem comprometer profundamente o sucesso das operações.
Podemos pensar na venda de ingressos de grandes eventos, como Olímpiadas ou festivais de música. Como a demanda pelos bilhetes é extremamente elevada, é prudente ter duas ou mais clouds em operação para dividir o tráfego intenso que será gerado e conseguir manter a venda em andamento mesmo que uma das nuvens apresente problemas durante os dias de comercialização das entradas. Ou pensar: caso caia, o que fazemos? Qual lugar vamos redirecionar o tráfego? Assim podendo garantir que ou todos têm acesso ou ninguém compra.
Outra situação que pode recomendar uma abordagem multicloud é uma exigência de segurança, especialmente no caso de bancos e outras instituições financeiras. Nesses casos, manter um datacenter privado é impensável, mas a opção por contar apenas com uma nuvem pública pode se mostrar excessivamente arriscado quando informação confidencial e/ou proprietária está envolvida.
Ainda nessas situações, o uso de múltiplas nuvens, a partir dos argumentos em contrário que listamos anteriormente, pode ser contornado a depender da robustez da companhia envolvida. Grandes bancos, por exemplo, são capazes de negociar junto a uma empresa como Amazon ou Microsoft ter uma nuvem privada no sistema dessas plataformas, mantendo seus dados – e de seus clientes – mais protegidos.
Como vimos, apostar em multicloud pode ser válido caso alguns requisitos estejam presentes, entre eles a capacidade financeira da empresa de contratar mais de um serviço. Contudo, investir em múltiplas nuvens não é para todos e não pode ser considerado de forma alguma uma exigência do mercado. É inteiramente possível operar com apenas uma nuvem pública e, muitas vezes, o multicloud representará apenas gasto extra sem aproveitar as especificidades de cada serviço.
Por isso que afirmo que essa solução não pode ser considerada uma tendência do mercado a ser seguida indistintamente por diferentes players. Ela é, na realidade, uma dentre diversas opções que as empresas têm à disposição e que devem ser comparadas com alternativas na hora de definir um investimento, levando em consideração questões como custo-benefício, demandas da empresa e exigências de disponibilidade e segurança de dados.